22 de jun. de 2015

A RAINHA(MÁ) DA IMPRENSA GOLPISTA.


Publicação da editora Abril violou direitos fundamentais e foi denunciada pelo Intervozes à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo
Reprodução
A capa da revista Veja alvo de denúncia
A capa da revista Veja alvo de denúncia
*Helena Martins
No momento em que o Congresso Nacional discute propostas de alteração da maioridade penal, especialmente a proposta de emenda constitucional (PEC) 171/93, cujo relatório da Comissão Especial criada para analisar a medida possivelmente será votado nesta semana, a revista Veja usa um caso extremamente chocante – tortura e estupro de quatro adolescentes no Piauí, que inclusive culminaram com a morte de uma delas – para praticar mais uma vez o populismo midiático em defesa da redução da maioridade penal
Ao longo das páginas do chamado “Especial Maioridade Penal”, a revista apresenta a proposta de redução como única saída possível para responder a casos como esse. Para não deixar que a memória traia os leitores, por pelo menos três vezes julga antecipadamente os quatro adolescentes acusados de, ao lado de um adulto, terem praticado aquelas violações.
“Os jovens que participam do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo?”, diz um trecho da matéria. Em outro, ela indica a pena que o adulto poderá obter caso seja condenado. No caso dos adolescentes, nem sequer essa ponderação é feita. O tiro é direto: “Os quatro adolescentes serão encaminhados a centros de correção, onde ficarão internados por um prazo máximo de três anos e de onde sairão como réus primários”. 
A prática constitui clara violação de direito, pois o julgamento não é de responsabilidade da revista e sim do Poder Judiciário, que  acompanha o caso com atenção no Piauí e em âmbito nacional. No entanto, ao longo de toda a publicação, os indivíduos envolvidos no caso que ocorreu no estado são tratados não como suspeitos, mas como culpados, inclusive com suposta fama de praticarem atos violentos, embora a fonte de tal acusação não seja citada. 
E essa violação não é a única cometida. A identificação de adolescentes que podem estar em conflito com a lei é proibida pelo Estatuto da Criança do Adolescente (ECA), mesmo que total ou parcialmente – como faz a revista, que usa fotos borradas e iniciais dos nomes dos acusados. 
Isso fere não só o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas também a Constituição Federal e pactos internacionais ratificados pelo Brasil, como o Pacto de São José da Costa Rica. Isto motivou a denúncia feita pelo Intervozes à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo na terça-feira 16.
No pedido, o coletivo requer que sejam tomadas as providências legais pertinentes à responsabilização da Editora Abril, que edita a revista Veja. A violação de direitos fundamentais - prática recorrente na imprensa brasileira – não pode ser naturalizada.
Aqueles e aquelas que defendem a proteção integral de crianças e adolescentes, tal qual estabelece a Constituição Federal, não podem desconsiderar ainda o alcance dessas violações. Apenas esta última edição de Veja teve 1.100.983 exemplares impressos. Neles, o que se vê é o uso de um jornalismo pautado pela espetacularização das notícias, pelo tratamento descontextualizado de dados e pesquisas, isso com o objetivo não de promover o debate sobre um tema de interesse público junto à sociedade, mas sim de impor a sua visão de mundo aos leitores.
Tanto é que, ao longo de toda a matéria, intitulada sugestivamente de “Justiça só para maiores”, não se vê uma única contraposição à tese da redução da maioridade penal como resposta ao problema da segurança que atinge o Brasil. Não há a problematização do que ainda não foi executado do ECA, o que poderia contribuir para a promoção de direitos em nosso País.
Ao contrário, o ECA é apontado pelos jornalistas que assinam a reportagem como “um dos mais lenientes conjuntos de leis do mundo destinados a lidar com menores infratores”. Segundo eles, a mudança no estatuto é a “única esperança de que se chegue a uma abordagem efetiva dessa tragédia. Enquanto isso, as Daniellys continuarão a ser estupradas, mortas a pedradas, jogadas de precipícios, sob o olhar leniente da Justiça”. 
Ao praticar populismo penal, apresentando a privação de liberdade em um sistema penal falido, a revista priva a sociedade de ter acesso a uma informação plural, contextualizada e completa. Ela ignora, por exemplo, o fato de o Brasil ocupar hoje o patamar de terceiro País com a maior população carcerária – posição que galgou, sobretudo, nos últimos dez anos, quanto também vimos o crescimento da violência, o que deixa claro que a saída proposta é absolutamente equivocada.
A revista também ignora o fato de que as instituições do sistema socioeducativo, embora possuam muitos problemas, como superlotação, dificuldades para garantir acesso à saúde e educação e mesmo violência, ainda assim conseguem números de reincidência menores que os constatados no caso das pessoas que passaram por presídios. Aliás, a crítica ao sistema penal aparece, no especial da Veja, em uma matéria com tom opinativo que não dialoga com as demais. 
Esse tipo de ausência tem impactos claros. O crescimento do punitivismo se expressa com o frequente aumento de penas, com novos crimes tornados hediondos, sem que ao menos haja uma problematização sobre os impactos dessa política. E, o que é absolutamente grave, sobre os grupos sociais que são os atingidos por ela.
A edição em questão é mais uma vez elucidativa desse mecanismo perverso. Ao indicar os adolescentes como praticantes de crimes bárbaros – embora em apenas um trecho da reportagem citada pondere que apenas 2,5% dos internos na Fundação Casa praticaram crimes considerados hediondos – constrói a imagem de que esses são os sujeitos perigosos que devem ser excluídos, extirpados do convívio social. Talvez por práticas como essa é que o verdadeiro extermínio de jovens negros no País cause espanto nas pesquisas, mas pouca comoção e engajamento da sociedade. 
Não é o debate franco de ideias que interessa aos grupos de comunicação hegemônicos. Como mostrou a pesquisa A mídia brasileira e as regras de responsabilização dos adolescentes em conflito com a lei, elaborada pela ANDI – Comunicação e Direitos, ao valer-se de casos de grande apelo midiático, os veículos nacionais indicam a redução da idade penal como principal mudança para conflitos que envolvem aqueles sujeitos.
A pesquisa comprova ser esse um noticiário reducionista, que alimenta a sensação de que a solução para a problemática é simples, negligencia o debate sobre o sistema socioeducativo e catalisa o medo coletivo. 
O que mais uma vez fica claro é que não há como lutarmos por direitos sem enfrentarmos o tema da comunicação, já que a mídia se tornou um dos principais espaços de construção de sentidos e de hegemonia na sociedade contemporânea. Se nós duvidamos disso, os grupos dominantes não perdem tempo com essa questão e se organizam para usar todo o aparato que têm para impor sua visão de mundo, mesmo que para isso tenham que infringir leis.
Urge, portanto, estranharmos o que aí está, criticarmos abertamente, exigirmos um jornalismo responsável e buscarmos outras narrativas que tenham o objetivo não de ludibriar a população, mas de realmente informá-la. 
*Helena Martins é jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos.  

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