Publicação da editora Abril violou direitos fundamentais e foi
denunciada pelo Intervozes à Procuradoria Regional dos Direitos do
Cidadão em São Paulo
Reprodução
A capa da revista Veja alvo de denúncia
*Helena Martins
No momento em que o Congresso Nacional discute propostas de alteração da maioridade penal, especialmente a proposta de emenda constitucional
(PEC) 171/93, cujo relatório da Comissão Especial criada para analisar a
medida possivelmente será votado nesta semana, a revista Veja
usa um caso extremamente chocante – tortura e estupro de quatro
adolescentes no Piauí, que inclusive culminaram com a morte de uma delas
– para praticar mais uma vez o populismo midiático em defesa da redução da maioridade penal.
Ao longo das páginas do chamado
“Especial Maioridade Penal”, a revista apresenta a proposta de redução
como única saída possível para responder a casos como esse. Para não
deixar que a memória traia os leitores, por pelo menos três vezes julga
antecipadamente os quatro adolescentes acusados de, ao lado de um
adulto, terem praticado aquelas violações.
“Os jovens que participam do
estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no
máximo, três anos internados. Isso é justo?”, diz um trecho da matéria.
Em outro, ela indica a pena que o adulto poderá obter caso seja
condenado. No caso dos adolescentes, nem sequer essa ponderação é feita.
O tiro é direto: “Os quatro adolescentes serão encaminhados a centros
de correção, onde ficarão internados por um prazo máximo de três anos e
de onde sairão como réus primários”.
A prática constitui clara
violação de direito, pois o julgamento não é de responsabilidade da
revista e sim do Poder Judiciário, que acompanha o caso com atenção no
Piauí e em âmbito nacional. No entanto, ao longo de toda a publicação,
os indivíduos envolvidos no caso que ocorreu no estado são tratados não
como suspeitos, mas como culpados, inclusive com suposta fama de
praticarem atos violentos, embora a fonte de tal acusação não seja
citada.
E essa violação não é a única
cometida. A identificação de adolescentes que podem estar em conflito
com a lei é proibida pelo Estatuto da Criança do Adolescente (ECA),
mesmo que total ou parcialmente – como faz a revista, que usa fotos
borradas e iniciais dos nomes dos acusados.
Isso fere não só o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), mas também a Constituição Federal e pactos
internacionais ratificados pelo Brasil, como o Pacto de São José da Costa Rica. Isto motivou a denúncia feita pelo Intervozes à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo na terça-feira 16.
No pedido, o coletivo requer que sejam
tomadas as providências legais pertinentes à responsabilização da
Editora Abril, que edita a revista Veja. A violação de direitos fundamentais - prática recorrente na imprensa brasileira – não pode ser naturalizada.
Aqueles e aquelas que defendem a
proteção integral de crianças e adolescentes, tal qual estabelece a
Constituição Federal, não podem desconsiderar ainda o alcance dessas
violações. Apenas esta última edição de Veja teve 1.100.983
exemplares impressos. Neles, o que se vê é o uso de um jornalismo
pautado pela espetacularização das notícias, pelo tratamento
descontextualizado de dados e pesquisas, isso com o objetivo não de
promover o debate sobre um tema de interesse público junto à sociedade,
mas sim de impor a sua visão de mundo aos leitores.
Tanto é que, ao longo de toda a
matéria, intitulada sugestivamente de “Justiça só para maiores”, não se
vê uma única contraposição à tese da redução da maioridade penal como
resposta ao problema da segurança que atinge o Brasil. Não há a
problematização do que ainda não foi executado do ECA, o que poderia
contribuir para a promoção de direitos em nosso País.
Ao contrário, o ECA é apontado
pelos jornalistas que assinam a reportagem como “um dos mais lenientes
conjuntos de leis do mundo destinados a lidar com menores infratores”.
Segundo eles, a mudança no estatuto é a “única esperança de que se
chegue a uma abordagem efetiva dessa tragédia. Enquanto isso, as
Daniellys continuarão a ser estupradas, mortas a pedradas, jogadas de
precipícios, sob o olhar leniente da Justiça”.
Ao praticar populismo penal,
apresentando a privação de liberdade em um sistema penal falido, a
revista priva a sociedade de ter acesso a uma informação plural,
contextualizada e completa. Ela ignora, por exemplo, o fato de o Brasil
ocupar hoje o patamar de terceiro País com a maior população carcerária –
posição que galgou, sobretudo, nos últimos dez anos, quanto também
vimos o crescimento da violência, o que deixa claro que a saída proposta
é absolutamente equivocada.
A revista também ignora o fato de que as instituições do sistema socioeducativo,
embora possuam muitos problemas, como superlotação, dificuldades para
garantir acesso à saúde e educação e mesmo violência, ainda assim
conseguem números de reincidência menores que os constatados no caso das
pessoas que passaram por presídios. Aliás, a crítica ao sistema penal
aparece, no especial da Veja, em uma matéria com tom opinativo que não dialoga com as demais.
Esse tipo de ausência tem
impactos claros. O crescimento do punitivismo se expressa com o
frequente aumento de penas, com novos crimes tornados hediondos, sem que
ao menos haja uma problematização sobre os impactos dessa política. E, o
que é absolutamente grave, sobre os grupos sociais que são os atingidos
por ela.
A edição em questão é mais uma vez
elucidativa desse mecanismo perverso. Ao indicar os adolescentes como
praticantes de crimes bárbaros – embora em apenas um trecho da
reportagem citada pondere que apenas 2,5% dos internos na Fundação Casa
praticaram crimes considerados hediondos – constrói a imagem de que
esses são os sujeitos perigosos que devem ser excluídos, extirpados do
convívio social. Talvez por práticas como essa é que o verdadeiro extermínio de jovens negros no País cause espanto nas pesquisas, mas pouca comoção e engajamento da sociedade.
Não é o debate franco de ideias que interessa aos grupos de comunicação hegemônicos. Como mostrou a pesquisa A mídia brasileira e as regras de responsabilização dos adolescentes em conflito com a lei,
elaborada pela ANDI – Comunicação e Direitos, ao valer-se de casos de
grande apelo midiático, os veículos nacionais indicam a redução da idade
penal como principal mudança para conflitos que envolvem aqueles
sujeitos.
A pesquisa comprova ser esse um
noticiário reducionista, que alimenta a sensação de que a solução para a
problemática é simples, negligencia o debate sobre o sistema
socioeducativo e catalisa o medo coletivo.
O que mais uma vez fica claro é
que não há como lutarmos por direitos sem enfrentarmos o tema da
comunicação, já que a mídia se tornou um dos principais espaços de
construção de sentidos e de hegemonia na sociedade contemporânea. Se nós
duvidamos disso, os grupos dominantes não perdem tempo com essa questão
e se organizam para usar todo o aparato que têm para impor sua visão de
mundo, mesmo que para isso tenham que infringir leis.
Urge, portanto, estranharmos o
que aí está, criticarmos abertamente, exigirmos um jornalismo
responsável e buscarmos outras narrativas que tenham o objetivo não de
ludibriar a população, mas de realmente informá-la.
*Helena Martins é jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos.
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